Reconhecer emoções em tempos de pandemia

Reconhecer emoções em tempos de pandemia

Ser capaz de reconhecer as expressões faciais é fundamental durante as interações sociais, uma vez que estas transmitem informações sobre as emoções dos outros, permitindo regular as nossas respostas em conformidade. Mas o que acontece quando parte do rosto está coberto por uma máscara cirúrgica?

As faces humanas são uma fonte rica de pistas sociais sobre os outros, nós próprios e a nossa relação com os outros e com o mundo. Ao olharmos para o rosto de alguém, conseguimos fazer uma série de inferências sobre essa pessoa, tais como identidade, sexo, idade, etnia, estado de saúde, atratividade, dor e emoções. A forma como estas pistas (e outras pistas sociais, como vozes) chegam ao nosso cérebro, são codificadas e representadas pelo mesmo, e guiam a nossa atenção é designada por processamento emocional e representa uma das áreas mais estudadas da Psicologia.

Apesar de os mecanismos subjacentes a estes fenómenos não serem ainda completamente conhecidos, as faces são tão importantes que existem determinadas áreas cerebrais especificamente dedicadas ao seu processamento.

Um dos aspetos mais fascinantes das faces humanas é o facto de veicularem pistas importantes sobre as emoções mediante determinados movimentos dos músculos – expressões faciais. Através das expressões faciais, conseguimos inferir sobre os estados emocionais outros, prever as suas ações e regular os nossos comportamentos em concordância. Da mesma forma, os outros conseguem inferir sobre os nossos estados emocionais, prever as nossas ações e regular os seus comportamentos. Esta partilha ajuda-nos a navegar no mundo social de forma adequada. Por exemplo, olhar para alguém com uma expressão facial de “raiva” – que sinaliza uma ameaça direta para o observador – está associado com respostas de aproximação (“luta” ou confronto) ou de evitamento (“fuga”).

Em 1994, Paul Ekman identificou seis categorias básicas de expressões faciais, com base no movimento dos músculos faciais: alegria, nojo, surpresa, medo, raiva e tristeza. Por exemplo, uma cara alegre é tipicamente caraterizada pelo sorriso; uma cara de raiva pelas sobrancelhas franzidas, boca tensa e narinas dilatadas; e uma cara de nojo pelo nariz enrugado e lábio superior levantado.

De forma geral, somos bons a reconhecer as expressões faciais e, por conseguinte, a regular o nosso comportamento em conformidade. Contudo, ocasionalmente e em situações particulares, o processamento de expressões faciais pode ser comprometido quando as faces, ou parte dessas, estão ocludidas. É isso que ocorre no atual contexto pandémico, em que a utilização generalizada de máscaras cirúrgicas (ou comunitárias) é uma medida inegável para diminuir a propagação no novo coronavírus, obrigatória em muitos países e recomendada pela maioria das organizações de saúde. Não obstante, que impacto traz esta medida no reconhecimento dos estados emocionais dos outros? Já deu por si a sentir dificuldade em “ler” a expressão facial de alguém que está a usar uma máscara cirúrgica?

Um estudo recente, revisto por pares e publicado na revista Frontiers in Psychology (https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fpsyg.2020.566886/full), procurou perceber qual o efeito da máscara na forma como reconhecemos as expressões faciais. Através de uma tarefa simples de reconhecimento emocional – na qual é solicitado aos participantes que indiquem qual a emoção representada por determinada expressão facial – os investigadores descobriram que a presença de máscaras cirúrgicas dificulta o reconhecimento de emoções específicas, como é o caso da alegria, do nojo, da raiva e da tristeza, mas não de outras, como o medo e do estado neutro (nenhuma emoção em particular).

Quando usamos a máscara cirúrgica, uma grande parte do nosso rosto fica coberta, incluindo a área do nariz e da boca – especialmente relevante para o reconhecimento da alegria e do nojo. A limitação no acesso à informação visual é uma das explicações apontadas pelos investigadores para a dificuldade em reconhecer certas emoções com a máscara. Estes resultados contrastam com alguns estudos anteriores que indicam que somos igualmente bons a reconhecer emoções mesmo quando a área do nariz e da boca está ocludida, reforçando a importância da região dos olhos na comunicação das emoções. Contudo, nestes estudos, as regiões do rosto estão cobertas por estímulos sem carga emocional, tais como lenços ou retângulos. É possível que as máscaras, ao simbolizarem a pandemia e o potencial perigo de contágio, confiram um significando mais ameaçador às faces, contribuindo assim para a perceção distorcida da expressão facial. Estudos futuros irão, certamente, ajudar a compreender este fenómeno.

Apesar da evidencia científica mostrando que as máscaras diminuem a capacidade para reconhecermos emoções específicas, a verdade é que, no dia-a-dia, não estamos só dependentes das faces para decifrarmos as disposições, intenções e pensamentos dos outros. Processamos informações de variadas fontes em simultâneo, sejam elas visuais (como é o caso da postura e movimento corporal), auditivas (como é o caso da voz) ou olfativas (como é o caso do odor corporal); e usamos informações sobre experiências prévias e sobre o nosso entendimento do mundo para selecionarmos, codificarmos, interpretarmos e darmos uso a todas estas pistas sociais. Os processos mentais envolvidos nestes fenómenos complexos fazem parte de um construto maior designado por Cognição Social que, para além do processamento emocional, envolve outros domínios como a teoria da mente, a perceção social e o estilo atribucional.

Concluindo, a utilização de máscara cirúrgica não constitui, per se, um desafio na interação com os outros, vindo talvez a reforçar a multiplicidade de informações, frequentemente redundantes entre si, que quotidianamente usamos para inferências acerca dos outros e, por extensão, a flexibilidade do nosso cérebro para se adaptar a situações mais ou menos artificiais.

Joana Grave

(Ciência na Imprensa Regional – Ciência Viva)

Sobre Joana Grave:

Licenciada em Psicologia (2012) e Mestre em Psicologia Forense (2014) pela Universidade de Aveiro. Colaborou enquanto investigadora (2016-2018) no Departamento de Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, e como assistente convidada (2017-2018) na mesma instituição. É atualmente bolseira de doutoramento em Psicologia no Departamento de Educação e Psicologia da Universidade de Aveiro, em colaboração com o Departamento de Psiquiatria e Psicoterapia da Universidade de Tübingen, Alemanha. O objetivo geral da sua investigação é compreender a forma como determinadas pistas sociais (em particular, expressões faciais e odores corporais) são percecionadas pelo cérebro e modelam processos cognitivos, comportamentais e fisiológicos, tanto na população geral como no contínuo psicótico. Para além do percurso académico, é membro da Ordem dos Psicólogos Portugueses desde 2016. Já desempenhou funções na área da neuropsicologia, psicogerontologia e psicologia da justiça.

 

Fonte: postal.pt

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